sexta-feira, março 30, 2007

Ecos de um concerto

A Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional da Ucrânia passou ontem pelo Porto, oferecendo, no Coliseu, um belo concerto.
A abertura da primeira parte, inteiramente dedicada a Beethoven, deu-se com "Leonora III". Ludwig foi sensato ao retirá-la da sua Ópera Ofélio – sendo uma abertura corria o risco de, com a sua magnificência, ofuscar o corpo principal da dita.
Seguiu-se o momento que, para mim, deu o maior brilho à noite: a interpretação da famosa Sinfonia n.º 5 de Beethoven. Magnífica! Aos primeiros acordes percebemos porque é que a BBC a escolheu para iniciar os seus programas de rádio durante a II Guerra Mundial. A eloquência daquele jogo concertado de quatro notas escolhidas e arrumadas a preceito – e que, em código de Morse, equivalem à letra V - robustecem o ânimo, pacificam a alma e conferem inteireza ao carácter de quem as ouve. Preparam o ouvinte para a crueza de alguns episódios da vida, com a promessa de Vitória que a antepenúltima letra do alfabeto (sem contar os duplos V e Y) vai inspirando.
A Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional da Ucrânia faz jus à reputação e historial que a acompanha. E, facto digno de registo, porque pouco usual, é dirigida elegantemente por uma mulher, Victoria Zhadko.
E, com a indiscutível qualidade da orquestra, até aquele que se anunciava o manjar principal, e que pessoalmente menos me entusiasmava, – a Carmina Burana vulgarizada no famoso anúncio da "Old Spice" – se mostrou de aprazível degustação. A obra de Carl Orff, com o seu inevitável aroma a after-shave e com as evocações ondulantes de um mar venturosamente encrespado, soou-me melhor do que o costume com aquela superior execução. O coro estatal russo reconciliou-me com "Oh, Fortuna Imperatrix Mundi".

quarta-feira, março 28, 2007

Porto de Vista Esclarecida IX




A joaninha acertou na localização espacial da obra retratada na fotografia. De facto, trata-se de uma estátua que se encontra nos Jardins do Palácio de Cristal, mais propriamente na Concha Acústica, que ladeia a Avenida das Tílias na vizinhança da Biblioteca Almeida Garrett.
Neste pequeno palco em forma de meia carapaça bivalve, onde se realizam muitos eventos culturais, existem duas destas estátuas, uma em cada um dos seus extremos.
Infelizmente não tenho mais informações sobre tais obras esculturais. E como desta vez Gbn não deu uma das suas respostas completíssimas sobre a obra em questão, e dado que a minha brevíssima pesquisa nalguns livros sobre a cidade do Porto e na net não surtiu grandes efeitos (só encontrei referências à muito conhecida história do "Palácio de cristal" - o originário e o actual -, aos jardins desenhados por Émile David – responsável, também, pelo desenho dos jardins da Cordoaria e do Passeio Alegre - e pouco mais) não posso indicar o nome do autor e a data da estátua. Quanto à identidade da figura representada - se bem entendi gbn (e peço que me corrija se estiver errada) - julgo que se trata, como Gbn havia alvitrado, de uma estátua da Deusa Egípcia Hator.

E, claro, menção honrosa, para o Mr. Sherlock, pela exímia condução de um raciocínio lógico que quase o levou à descoberta da resposta, e para a Verde, pelo palpite certeiro!

segunda-feira, março 26, 2007

sexta-feira, março 23, 2007

ZOOMático

(Ainda) Reminiscências d`As vidas dos Outros
Berlim, Bahnhofplatz, Abril de 2006

quinta-feira, março 22, 2007

L'hymne de nos campagnes

Neste início de Primavera (envergonhada, é certo!), nada melhor do que ouvir cantar uma ode à Natureza. "Tryo", grupo francês composto por quatro (cinco?) músicos, partindo de sonoridades "reggae" e misturando-as com outras influências, compôs este “L'hymne De Nos Campagne”. É uma canção muito simples que procura passar uma mensagem ("J'aimerais ... Que tu captes le message de mes mots", dizem). “C'est l'hymne de nos campagnes/ De nos rivières, de nos montagnes!“
Procuram, com a sua música singela, trilhar o caminho de uma nova música interventiva. ("Enrayer le moteur bien huilé de la pensée dominante et offrir au public un rapport au monde où l'engagement se vit et se chante au quotidien".) Também por isso o seu terceiro trabalho se chama “Grain de sable».
"L'hymne De Nos Campagne" é do seu primeiro disco, “Mamagubida”, datado de 1998. O clip (que faz lembrar saudosos desenhos animados de outros tempos) é de Tonari No Totoro.

Sigamos o seu conselho (quando o tempo melhorar!):
"Assieds toi près d’une rivière / Ecoute le coulis de l’eau sur la terre / Dis toi qu’au bout, hé ! il y a la mer
Et que ça, ça n’a rien d’éphémère / Tu comprendras alors que tu n’es rien ..."
"Assieds toi près d'un vieux chêne / Et compare le à la race humaine/ L'oxygène et l'ombre qu'il t'amène
Mérite-t-il les coups de hache qui le saigne ? /Lève la tête, regarde ces feuilles / Tu verras peut-être un écureuil / Qui te regarde de tout son orgueil / Sa maison est là, tu es sur le seuil."

Cidade


Theophile Emmanuel Duverger | Alone | 1821 | Guildhall Art Gallery, Londres.

Subimos e descemos no elevador.
Vezes sem conta.
Desviámos olhares, impensável palavras.
Olhámos para cima, para baixo.
Desconforto. Maduro. Antigo.
As escadas seriam a salvação.
Mas o edifício é alto,
A seara é extensa;
Os trabalhadores não abundam.
Parámos no patamar.
Franqueei-te a saída
Sem um “adeus”, um “até breve”.
Paredes que somos;
Pedras frias e ásperas
De matizes acinzentados ornada.
Um vazio na cidade,
Um só paciente da cidade
Que saliva pelo olhar do outro.
Pode ser um esgar,
Um entreolhar,
Um soslaio.
Basta-me um contacto.
Sem ele corto os pulsos,
Atiro-me da ponte,
Rebento os miolos!
Não!
Não!
Não aguento a tua indiferença, bruta Cidade!

F.L.

Ferrolho

Um buraco na estrada
Só reclama um desvio de trajecto.
Um buraco no céu
É fresta divina que solapa o sol.
Um buraco negro
É coisa irreal de livro de astronomia.
Um buraco na tua meia
É descuido cúmplice de afago.
Mas um buraco no peito
É dor lancinante
Que não sara,
É bicho,
É mal,
É coisa ruim,
É o diabo em forma de gente,
É gente que faz o diabo.
O esterno que guarda o coração
Abre-se escancarado
Qual cofre arrombado
Em noite de negrura vestida
E verte-se inteiro para ti.
Ao invés de amparares a seiva,
Deixa-la escoar-se pelo abismo
Da tua indiferença.
“Olha, o líquido que rejeitaste
Tornou-se meio vital para outrem!”
“Quem é esse outrem?”, perguntas tu desdenhosa.
Eu só, só eu.
Quem mais querias
Se o ferrolho da tua porta
Esteve sempre corrido,
Lacrado, amuralhado?
Batia uma vez mais em vão.
O eco surdo da madeira
Refulgia na opacidade dos meus ouvidos,
Doirando o “nada” em “tudo”,
Ou, pelo menos, em “talvez”.
Hoje descobri que a dor varia:
Ela é directamente proporcional
À força do batente
E do ferrolho do teu corpo.
Da tua portada já me apartei.
Deixei agora o teu terraço.
Amanhã chegarei ao passeio
Sobranceiro à tua casa.
Aí, nesse momento,
Transformo-me em caracol
E carrego a tua casa nas minhas costas,
Sem esquecer porta, ferrolho e batente.


F.L.


Early Night Post (24)


Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos ...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar ...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que plantura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, Antologia Poética, Círculo de Leitores, pp. 85-86

quarta-feira, março 21, 2007

ZOOMático

Florindo (Março 2007)

terça-feira, março 20, 2007

ZOOMático


Um Português em Paris (Janeiro 2007)


Manuel Cargaleiro (Vila Velha de Rodão, 1927 - ). Painéis de azulejos no átrio da estação Champs-Élysées/Clemenceau do Metropolitano de Paris (1996).

segunda-feira, março 19, 2007

Porto de Vista Esclarecida (VIII)


Gbn voltou a acertar! Parabéns! E este desafio era bem mais difícil do que os anteriores. De facto, trata-se de um segmento do conjunto de painéis de azulejos que revestem a parte interior do tecto de uma espécie de arcada do Palácio Atlântico, onde se encontra a sede do Millenium.
Este edifício, numa posição privilegiada, mira, sobranceiro, a Praça D. João I. Do seu lado direito situa-se o Teatro Rivoli. Do outro é delimitada pela Rua Sá da Bandeira.
E que posso eu mais fazer a não ser citar Gbn?
No painel fotografado, "A imagem representa o Deus Neptuno, filho de Saturno e de Reia, irmão de Júpiter e de Plutão, Deus do Mar; e a sua Mulher Anfitrite, filha de Nereu (Deus do oceano) e de Dóris. Foi primeiramente considerada deusa do Mediterrâneo, mas este domínio alargou-se depois aos outros mares.
O autor é Jorge Nicholson Moore de Barradas (1894-1971) natural de Lisboa. Pertenceu à primeira geração de modernistas portugueses. A última fase da sua pintura é marcada pela viragem para uma tendência surrealista.”
Resta acrescentar que este pintor, ilustrador, ceramista, gravador e escultor realizou trabalhos de cerâmica para muitos edifícios públicos e particulares em Portugal (por exemplo, os painéis do Palácio da Justiça de Lisboa (1969)) e no estrangeiro (por exemplo, o frontal de altar cerâmico para a Igreja de Santo Eugénio em Roma).

Pai


And when did you last see your father?, William Frederick Yeames, 1878, Walker Art Gallery, Liverpool.

Pai ausente,
Porque presente
Torna mais exigente
O laço biológico que nos une.
Cabelos já brancos
(Dos poucos que tens),
Desalinhados,
Borboleteando ao sabor da brisa.
Aproximo-me de ti,
Contemplo as tuas mãos.
Sim, sempre foram uma referência:
De trabalho, pão, honradez, verticalidade.
Sentimentos tê-los-ás,
Mesmo ocultos por baixo de uma sonora indiferença.
“Que interessa dizer que se ama
Quando isso é patente?
Acaso terás dúvidas sobre isso?”
Pragmático, incisivo, cortante.
Não é o afago que enche o estômago,
Mas é ele que reconforta
O leito quando, em criança,
Não me aconchegavas os lençóis.
Curioso, Pai:
A tua ausência
É a presença mais notada.
E sendo-o, és mais do que digo.
Molhando os lábios nas tuas palavras:
“Foge a dizer o óbvio.
Soa sempre mal.”

F.L.

Porto de vista (VIII)

Early Night Post (23)

Sobrevivente (Março 2007)

"Todos morreram e eu (...) era tão solitário como a árvore na clareira da minha floresta, a árvore à volta da qual a tempestade derrubou toda a floresta, um dia antes de rebentar a guerra. Ficou uma árvore na clareira, junto da casa da caça. Passado um quarto de século, uma nova floresta cresceu em redor dela. Mas essa árvore, como vês ainda continua a viver, hoje, com uma força tremenda e irracional. Qual será o seu objectivo? ... Nada. Simplesmente, quer continuar viva. Parece que a vida, tudo o que é vivo, não tem outra finalidade além de permanecer até poder e renovar-se sempre. Assim que regressei da guerra, falei (...) Ele ouviu-me e só disse o seguinte: «Que é que queres? Sobreviveste.» Pronunciou-o, como se se tratasse de uma sentença. E também como se fosse uma acusação. (...) Então percebi que quem sobrevive a alguma coisa, ganhou o seu processo, não tem direito, nem razão para acusar alguém; (...)"

"As velas ardem até ao fim", Sándor Márai, pp. 131-132.

domingo, março 18, 2007

Curtas sobre metragens

The last king of Scotland, O último rei da Escócia.
Realização
: Kevin Macdonald.
Elenco
: Forest Whitaker, James McAvoy, Kerry Washington.
Argumento
: Peter Morgan, Jeremy Brock.

EUA, 2006.
Sítio oficial: http://www.foxsearchlight.com/lastkingofscotland/

Arreigada está a ideia, no dito “mundo civilizado”, que o mal de África é o povo africano. Xenofobia e racismo à parte, é esta a plasticidade que europeus e norte-americanos desejavam emprestar à opinião pública mundial em décadas próximas da nossa e, porventura, ainda nos dias que correm.
"O último rei da Escócia" é uma aula de real politik. Um órfão criado pelo exército britânico por entre tarefas menores e sevícias maiores transforma-se em animal de estimação que, na altura conveniente, é militar e economicamente apoiado para derrubar o anterior pet que se encontrava, neste caso, no Uganda. Da ilusão (alguma vez terá existido?) de que Idi Amin Dada (Forest Whitaker) mudará o seu país, fazendo dele um lugar mais próspero e justo, depressa somos conduzidos a uma personalidade doentia, obsessiva, caricatural.
Num outro ponto do globo, o recém-formado Nicholas Garrigan (James McAvoy) anseia fugir da sombra tutelar do pai e parte à aventura (humanitária?) para aquele país africano. Um encontro fortuito transforma-o no filho branco de Amin, projecção de uma terrível infância do Presidente em que o agora médico pessoal do regime representa o papel de pai e de mãe, de porto seguro contra a traição, contra o medo de crescer.
A criança grande evolui para ditador enorme com laivos de genialidade operatória do dia-a-dia (veja-se a conferência de imprensa do “estadista”). O olhar perturbado de Amin tresfolga entre o amor a Garrigan e o ódio pela aparente verticalidade que ele representa. Até ao momento em que o médico imaturo se deslumbra com o luxo reservado a muito poucos no meio do caos e da extrema miséria de quase todos. Aí, deixa de haver personagens boas e más; apenas pessoas e a sua condição.
A representação que fez reverter para Forest Whitaker o Óscar de melhor actor principal surge de modo tão natural como a personagem se densifica ao longo do filme, antecipando-se a enorme dificuldade que Whitaker deve ter sentido ao despir a farda do general Amin.
No final, sai-se com o travo amaro de que a situação política em certas regiões continuará a sofrer condicionamentos exógenos. Nessas paragens, a liberdade do Estado e dos cidadãos individualmente considerados é uma miragem proporcional à riqueza, à corrupção e à podridão de várias potências ocidentais.
Não obstante, ficam os sorrisos das crianças africanas. Ao menos daquelas que ainda reúnem forças para correr atrás de anafados carros presidenciais.

Brecht, poética, governar e WC

À Rtp e à Rocky, pela oferta de Poemas de Brecht (Porto: Campo das Letras, 2000). A ambas e ao A. pela amizade e reducionismo de problema(s) que me proporcionaram em jantar olhando o Douro.

O Príncipe de Maquiavel é, como sabemos, o livro de cabeceira aconselhado a qualquer político.
A antologia de poemas de Bertolt Brecht deveria ser o livro que todos nós, administrados, deveríamos ler em suaves tragos ao acordar. Lê-lo ao deitar por certo retiraria a tranquilidade necessária para um sono repousado. Ao iniciar o dia, quando bem digerida, a palavra brechtiana seria mais perigosa que qualquer conspiração terrorista.
Não se ignora que Brecht era ideologicamente comprometido. Apesar de nunca se ter inscrito no Partido Comunista, o homem que nasceu alemão (1898) e morreu austríaco (1956) elabora hinos profundos dirigidos à classe operária («Quem construiu Tebas, a das sete portas?/Nos livros vem o nome dos reis./Mas foram os reis que transportaram as pedras?» – Perguntas de um operário letrado). Entre uma super-estrutura e uma infra-estrutura de medo, desânimo, escravatura e uma ironia contagiante, o Poeta ridiculariza Hitler e todos os ditadores. Não que nisto se encontre uma visão maniqueísta. Ela só o é aparentemente. Recorde-se que Brecht parece sentir aversão intrínseca ao arquétipo de "homem bom": «Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com/Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com/Uma boa pá debaixo da terra boa» (de que adianta ser bom?) – Algumas perguntas a um «homem bom». A conclusão de que os proletários são bons e os burgueses e latifundiários são maus é uma redutora e inconsequente visão da sua poética.
A ironia e o desdém em relação aos poderes instituídos são por demais evidentes. No poema Sente-se, cortante é o verso em que a idiotice é apresentado como o sumo alimento da classe: «Não há dinheiro que o pague.». Os políticos são satirizados ao ponto de a sua missão ser apresentada como o alfa e o ómega da ventura humana: «E atrever-se-ia a nascer o sol/Sem a autorização do Führer? [amiúde referido como «o pintor», conhecida que era a vocação de Hitler em dedicar-se a essa carreira. A pintura teria perdido incomensuravelmente menos que a Humanidade…]» (Dificuldade de governar). A esta figura, de jeito tão merecido apresentada como o anti-Cristo em Brecht, está reservado um mimo notável: «Se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia [ao sétimo não poderia ser, marcando-se com a certeza da aritmética o que a História já deixava a descoberto]/Não acharia em todo o império uma vaga de porteiro» (A propósito da notícia da doença de um poderoso estadista).
De modo explícito e em tom acusatório puro: «Ou será que/Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira/São coisas que custam a aprender?» (idem). A resposta é dada e surge com uma simplicidade infantil comovente: «Mas não seria mais simples para o governo/Dissolver o povo/E eleger outro?» (A solução) – o uso de mecanismos democráticos invertidos em um jogo que desafia os traços estruturantes da ciência política.
O Autor fala de modo desabrido de um dos possíveis fins – do suicídio tem uma visão que diríamos romanceada, embora a pedagogia que assalta toda a sua obra logo o obrigue a asseverar-nos que: «De qualquer modo/Não se deve dar a impressão/De que se dava/Muita importância a si mesmo» (Epístola sobre o suicídio). Da relatividade da vida (e da morte) dá testemunho seguro ao ditar-nos o seu testamento (cerrado): «Gostaria que nela [pedra tumular] escrito fosse:/Ele deu sugestões: nós/Aceitámo-las./Uma tal inscrição/A todos honraria.» (Dispenso a pedra tumular).
Brecht não faz poemas para o leitor, mas sim com o leitor. Este último é convidado de honra na sua obra, é estrela da primeira companhia da guerra que tão de perto viveu e que o fez transformar-se em cidadão do Velho e do Novo Mundo. Em Sente-se, Brecht apelida o leitor de «idiota», confrontando-o com a sua pequenez («Você é um idiota./Está realmente a escutar-me?/Não há pois dúvida alguma de que me ouve com clareza e distinção?») e com a crueza do auto-conhecimento («E no entanto não é desinteressante para você saber o que você é/E no entanto é uma desvantagem para você não saber o que toda a gente sabe»).
Ele é capaz do escatológico, com uma inesperada ode heróica ao WC (O canto de Orge): «Nesse lugar é permitida a cada um a alegria/De ter por cima a estrela e, por baixo, a porcaria.»; «Lugar de humildade: nele saberás bem/Que não passas de um homem que nada retém».
Adverte-nos para a necessidade de estarmos sempre abertos ao que é novo, a não nos quedarmos pelo imobilismo, até porque a mudança está inscrita na natureza das coisas: «Quem ainda está vivo nunca diga nunca./O que é seguro não é seguro.» (Elogio da dialéctica). Contudo, da modernidade tem o Autor uma visão desconfiada, sancionando a concepção bíblica de que nada de novo existe sob o sol: «A carne nova come-se com velhos garfos. (…) As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras. [boutarde à comunicação social?]/A sabedoria continuou a passar de boca em boca.» [um apelo ao historicismo desligado do Volkgeist de que o nacional-socialismo se serviu como sustentáculo de hermenêutica jurídica?]
A visão descomprometidamente comprometida de Brecht fá-lo retornar aos assomos bíblicos: «Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.», revelando o génio da ascese, do sacrifício, do estóico suportar da ignominia: «Pela glória, quem não faria grandes coisas/Mas quem/As faz pelo olvido?» (Elogio do trabalho clandestino).
Dono de uma inigualável riqueza interior, da dor tem a preclara visão de caminho para a redenção e para a mudança: «Para atingir o que é grande há que passar por grandes transformações./E as pequenas transformações são inimigas das grandes transformações./Tenho inimigos. Logo devo ser célebre» (Citação). Cortes abruptos de pensamento são constantes na poética brechtiana.
A inteligência aguda e o modo inquietante como vê de um ângulo nunca visto as realidades estão bem patentes em Da Violência: «Do rio que tudo arrasta se diz que é violento./Mas ninguém diz violentas/As margens que o comprimem.». Ainda mais: «O que tem fome e te rouba/O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo/Mas não saltas ao pescoço/Do teu ladrão que nunca teve fome» (Quem é o teu inimigo). Ainda: «Ah, nem todo o homem que regressa a sua casa é um vencedor/Mas não há vencedor que não regresse a sua casa.» (Este homem sabia elaborar um plano, e caiu…). Palavras incómodas contra o comodismo de encarar a realidade segundo grelhas de leitura pré-dadas e que se recebem de forma acrítica. Escrita revolucionária, dado que carregar no sangue o espírito revolucionário é ver o que mais ninguém vê; é sujeitar o mundo a uma leitura alumiada por uma perspectiva de jogo de luzes impassível de apreensão instantânea.
Devemos terminar. Brecht, neste exacto momento, asseveraria, com um olhar que imaginamos matreiro, sagaz e estupidamente humano: «Criança educada deve saber estar calada.» (O que uma criança tem de gramar).

sábado, março 17, 2007

ZOOMático

Fragmentos serranos

sexta-feira, março 16, 2007

Martin Solveig - Rejection

No fim de uma óptima sessão de um jovem e muito promissor DJ de House Music (e não, não estou a falar do muito querido DJ Di Pietro, que é jovem e promissor, mas por ser meu irmão me abstenho de elogiar! ;-)) aparecia muito bem "mixado" um som pegadiço que não mais me saiu da cabeça!
Falo de "Rejection" de Martin Solveig, em cujos trabalhos aparece um cocktail muito interessante de house, electro, rock, R&B e disco.
Esta música, inicialmente incluída em "Hedonist" (2005), reaparece nos seu "So far" lançado em Dezembro passado.
É, sobretudo, uma música cool, muito divertida e despretensiosa. Não consigo ouvi-la sem ficar bem-disposta e com uma vontade imensa de dançar. Aliás, não consigo deixar de ouvi-la, o que é muito mais perigoso e preocupante! :- )
O video também tem a sua piada. ;-) Aqui ficaria como aperitivo para o fim-de-semana que se avizinha e que já cheira a praia, se o you-tube não estivesse a falhar. Depois de ter estado insistentemente a tentar "postá-lo" sem sucesso, deixo o endereço: http://www.youtube.com/watch?v=HNPVFprwmVk

PS – Cuidado! Não sei se o mal se pega! ;-)

quarta-feira, março 14, 2007

Curtas sobre Metragens

As Vidas dos Outros
Das Leben der Anderen
Realização de: Florian Henckel von Donnersmarck
Interpretações: Ulrich Muhe, Martina Gedeck, Sebastian Koch
ALE, 2006, Cores, 137 min.

Já há muito tempo que não via um filme que me agradasse tanto. Fora ao cinema a medo. O Óscar para melhor filme estrangeiro fazia-me temer o pior, depois de ter visto "The Departed" a arrebatar o prémio da Academia para melhor filme. A história de polícias e bandidos não me convencera. As superiores interpretações do veterano Jack Nicholson e de um surpreendente Leonard Dicaprio não foram suficientes, na minha opinião, para sustentar o filme e erigi-lo a um plano de tal destaque. Ainda mais em detrimento do preferível "Babel", com o seu puzzle de histórias (só a passada no Japão me pareceu claramente deslocada e anódina) arrumadas de modo original por um Alejandro González-Iñárritu que assim fecha uma interessante trilogia.
Uma sms apologética do filme, um punhado de críticas abonatórias e o decisivo argumento da muito útil oportunidade de treinar o ouvido para a língua de Goethe venceram os meus medos. E ainda bem que tal aconteceu. "Das Leben der Anderen" destila humanismo.
A história começa em 1984. O muro, ainda, divide as duas Alemanhas, abafando aqueles que vivem na sociedade orweliana da parte dita democrática. Uma rede de informações é tecida por muitos (tantos!) cidadãos pacatos (estranhamente "normais") que se dedicam, submissa e acomodadamente, a ver, ouvir, e relatar todos os passos de vizinhos e companheiros de trabalho. A ler a vida dos outros, à procura de passagens dissonantes com a narrativa que o regime silenciosamente impunha, num texto ditado e que todos deviam repetir.
O Capitão Gerd Wiesler (Ulrich Muhe) destaca-se da mancha anónima de informadores. Convicto elemento Stasi, cumpre escrupulosamente as suas funções. Fareja os recantos das vidas daqueles que lhe parecem suspeitos – e poucos são os que escapam ao olfacto apurado deste profissional treinado. Como académico reputado ensina os seus métodos de interrogatório aos novatos que vão sendo amestrados. Recebe, por isso, com agrado a incumbência de seguir a vida de um dramaturgo famoso, George Dreyman (Sebastian Koch) que vive em harmonia, pelo menos aparente, com o poder instituído. Não são intuitos interesseiros de progressão nos quadros do partido que o acicatam – como acontece com o oficial de alta patente Anton Grubitz (Ulrich Tukur), seu colega de escola - nem outros vis desejos mundanos – como os apetites carnais do Ministro da Cultura Bruno Hempf pela actriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), companheira de Dreyman. Move-o, apenas, a superior missão de salvaguarda do regime que aprova.
Wiesler segue a vida de Dreyman. Assiste ao seu desenrolar, sentado a uma secretária com auscultadores atentos e écrans vigilantes. Perscruta-a até aos mais ínfimos pormenores. Vive-a, à míngua de uma que lhe pertença. A vida de Dreynman inunda a sua. Ocupa o vazio que o habita. É ela que lhe oferece as suas únicas emoções. Só tem a vida de Dreynmar e de Sieland. A vida dos outros. Agarra-se, então, a ela. Procura remendá-la. Para isso trai o regime, esconde-lhe informação. Deixa que Dreyman – sem que este suspeite da vigilância a que é sujeito e da conivência com que é brindado - publique um artigo altamente comprometedor no ocidental "Der Spiegel". Enquanto o texto é preparado em segredo na casa do escritor, Wiesler forja, para os relatos oficiais, uma "falsa" peça que o dramaturgo estaria a escrever para comemorar os 40 anos da RDA. Cria uma trama ficcional em que Dreyman desempenha um papel sem o saber.
O que o leva a manipular o curso de acontecimentos? Um coração que entretanto começara a bater? Um imperativo ético que, entretanto, o conquistara? A soberba interpretação de Ulrich Muhe, que poupa em artificios e exageros, deixa espaço para a suposição. A derrocada do pétreo e insensível stasi dá-se simbolicamente aquando da sua conversa com a criança no elevador. Aí transige com a sua férrea actividade persecutória. Nasce um novo Wiesler. No entanto, a pele permanece a mesma. Sentimo-lo, percebemo-lo, porque Ulrich Muhe no-lo dá a conhecer quase imperceptivelmente. Não precisa de palavras, esgares ou olhares mais impressivos. À transparência, lemos-lhe a alma renovada.
Com o incumprimento do dever que o vinculava face ao regime, liberta-se. Reganha a sua vida, recupera a sua humanidade. Conquista o seu direito à "Sonata para um homem bom".
E o filme podia ser só isto. Mas é muito mais. Deixa-nos muitos pontos para reflectir. Dele podemos tirar muitas lições para a sociedade controladora em que vivemos. Ensina-nos a estar de atalaia para novas formas de ditadura informacional que se vão instalando, a pouco e pouco.
O filme tem, também, o mérito de não cometer o pecado que podia ser capital - o encontro sentimentalão entre o stasi arrependido e o vigiado agradecido. Salva-se in extremis. O relato da história passada, escrita pelo punho de Dreynman, em livro publicado já após a queda do muro de Berlim, serve os intuitos apaziguadores. Basta-nos que, na última cena do filme, Wiesler - aquele que um dia fora o agente „HGW XX/7" - com um leve sorriso no rosto, após comprar o livro, o reclame do vendedor despido de embrulhos supérfluos "por ser para ele" a sonata nele contida.

terça-feira, março 13, 2007

Depósito



Chama-se "Depósito. Anotações sobre densidade e conhecimento". Traz à luz um conjunto de objectos variados que se encontravam escondidos (e por isso, de alguma forma perdidos, ou despidos da sua "densidade" como valores do conhecimento) em várias Faculdades da Universidade do Porto.



Parte deles povoam, agora, o átrio principal da Reitoria da Universidade do Porto.

Outros encontram-se na primeira sala que aparece a quem entra pelo "átrio de química". A ideia que subjaz à sua arrumação é deveras interessante. Numa parede coberta de estantes, peças muito diferentes perfilam-se lado a lado, segundo uma "ordem de complexidade". No fundo aparecem manifestações da maior simplicidade natural (rochas), a que se vão seguindo outras ilustrativas da vida e da morte, muito mais intrincadas. Num plano superior surgem os produtos da actividade cultural, culminando nas obras geradas por uma laboriosa e aturada tarefa de investigação: as últimas cinco teses de doutoramento das várias Faculdades. Vale a pena pegar num dos exemplares de binóculos que lá se encontram pendurados para perscrutar esses brilhantes frutos do intelecto humano. ;-)
Interessantes peças originais, criadas propositadamente para a exposição e que se encontram numa plataforma inferior, completam a exposição.
Passando nas proximidades da Reitoria da UP (da Praça dos Leões ou da Cordoaria), vale a pena uma breve visita. Até 30 de Junho.

segunda-feira, março 12, 2007

Viver comigo

Self-portrait, Andy Warhol, 1986, Guggenheim Museum, Nova Iorque.

Viver comigo
Em casamento que não conhece divórcio,
Em negócio irrevogável, irretratável e insufragável.
Cheirar-me, abraçar-me, sorrir-me.
Conteúdo contido numa pele
Escura, branca, amarela, parda.
Viver comigo
É amiúde dureza granítica,
Outras, leveza pungente.
Viver comigo
É pespegar-me numa esplanada
E conversar e rir
E chorar e perguntar
E ver simplesmente o tempo passar.
Viver comigo
É um dia amaro e triste,
Outro de(leite) e mel.
Viver comigo
É festa constante,
É fado sofrido.

Se viver comigo
Sentido tem,
Que ao menos seja p’ra viver contigo!

F.L.

domingo, março 11, 2007

Cancelas


Railway Train Attacked by Indians, Theodore Kaufman, 1867, colecção privada.

Suavemente beija a brisa a vidraça.
Amolece o pão no alforge.
O dia ganha o cheiro de café acabado de fazer.
Os raios da manhã ditosa enobrecem o telhado de zinco.
Surges tu, luzidia, refulgente,
Magnífica em tons de magnólia que carregas ao acordar.
Passos lentos, sonolentos, de vida bem resolvida.
Pelos passos se conhece quem neles se equilibra.
O calcorrear dos teus dedos
Denuncia a infinitude da tua alma.
Dedos esguios, finos, esbeltos,
Dir-se-ia de artista se à mão pertencessem.
Mas o corpo não conhece fronteiras
Ou portagens de auto-estrada.
Não há cancelas a abrir, comboios a apitar.
Só gestos e afagos que o percorrem
Num imorredoiro peregrinar para o mar.
Mar? O dos teus olhos, azul, verde, castanho:
As marés vão e vêm,
Reflectindo areia revolta que devolve
O arco-íris de cor que é aura do teu Ser.

F.L.

sábado, março 10, 2007

A agenda

Henri Cordier, Gustave Caillebotte, 1883, Museu d’Orsay, Paris
O objecto era pequeno: talvez quinze centímetros de altura por dez de largura. Senti-lhe o peso. Mais tarde lembrar-me-ia de que era demasiado leve para as pesadas recordações que carregava. Era um livro de capa dura, revestida de um tecido áspero e gasto cujo rosa coçado apenas deixava adivinhar o vermelho vivo de outros tempos.
Abri-lo sufocou-me, tal foi a intensidade com que a nuvem de pó me procurou e se abrigou nas minhas narinas. Depois de me recompor, descobri que as folhas pautadas fervilhavam de acontecimentos e revelavam prioridades sucessivamente revistas, a avaliar pelo frenesim das correcções de tinta branca e das correspondentes substituições.
As linhas eram de um azul parecido com o dos cadernos da escola primária. O canto inferior de todas as folhas estava torcido e sujo, o que só podia significar que esse ano fora vivido até ao último dia.
Um de Janeiro de 1973 cheirou-me a um entusiasmo insofreável e salpicou-me de perfume de alfazema: as tarefas transbordavam esse dia, invadindo as páginas seguintes com letra sôfrega e resoluta: “visitar todos os Domingos a mamã no lar”, “aprender a distinguir os verdadeiros amigos dos outros”, “mandar encolher a saia de roda”, “tomar uma decisão quanto ao Carlinhos”, “mostrar ao Chefe o meu valor”, “reservar os sábados para mim”, “voltar a escrever”, e por aí fora. Quinze de Março. Flores de urze marcavam esta página. Não é fácil encontrá-las por estes lados: planta tipicamente transmontana. O primeiro indício sério.

Azinhaga do tempo

Old Elms in Prater, Ferdinand Georg Waldmueller, 1831, Hamburger Kunsthalle, Hamburgo.

Na azinhaga do tempo
Encontrei um amuleto
De sangue e cianeto.
Dos seus ramos
Fiz pender frutos
De sonhos insanos,
De lutas enlutadas.
Na hora da colheita
Vi trabalhadores suados
Curados da maleita,
Dos trigos em vão malhados.

Na azinhaga do tempo
Rasguei o teu retrato,
Vi lúcido o passado,
Analisei solene o presente.
Cada pedaço de ti
Está agora sepultado
Como húmus da azinhaga.
O que daí florescer
(Se de flor se tratar)
Será por certo urze
Daninha e embaraçada.
Formosa flor é impossível ser.
Semente sadia não era.

Na azinhaga do tempo
Ganhei afastamento e profundidade.
Insignificante afinal era
O que há tanto me tolhia
E tão pouco ledo me trazia.

F.L.

Regularidade


Woman in the Wilderness, Alphonse Mucha, 1923, Mucha Museum, Praga.

“A regularidade matemática aniquila o espírito”.
Não se recordava já onde lera a frase, mas retivera-a numa espécie de sono letárgico ao pé daquela região do cérebro que, volta e meia, nos trai e explode qual vulcão libertando magna incandescente. Recostara-se e fechara as persianas da mente.
A vida que tinha diante dos olhos (talvez por estarem momentaneamente privados da luz de Março que lá fora despontava) aparecia-lhe como uma sucessão de algumas vitórias salpicando falhanços monumentais. Habituara-se a conviver com os falhanços. Contudo, a tal ideia de regularidade agonizava a certeza a que sempre aspirava.
“E se os falhanços forem, ao fim e ao cabo, pedaços de um percurso que é necessário viver? Mas este não é o percurso habitual. Lá está a regularidade…”.
Semi-abrindo os olhos ganhava consciência do espaço turvo em que habitara. Como se uma aparição lhe bendissesse o percurso e o dotasse de um entendimento outrora tolhido.
Ver as aparentes derrotas como etapas. Que não têm de ser iguais à regularidade. Porquê tanto medo da diferença? Será o receio do estigma, do afastamento, ou pura e simplesmente a cobardia de aceitar e afirmar que somos mais felizes ao ouvir aquela música antiga de que ninguém fala, ao invés do sucesso do momento?
Regularidade e irregularidade. Afinal quem as define? A maioria. E se esta maioria, em um dia solarengo, decidisse vencer hipocrisias e deixar cair as máscaras? A antiga irregularidade passaria a ser a imperante regularidade. Tudo com a paz do costume.
O telemóvel acordou-o do torpor em que estava imerso. O convite por sms não lhe agradava. Acto contínuo, escreveu a costumada resposta, invocando compromisso anterior imaginário. Preparava-se para enviar a mensagem quando o seu dedo gelou.
“A regularidade matemática aniquila o espírito”.
“Obrigado, mas não me apetece.” O ecrã do telemóvel reflectia o sorriso tranquilo que agora ostentava.

sexta-feira, março 09, 2007

Early Night Post (22)

Incandescente
"Cada um gera também aquilo que acontece consigo. Gera-o, invoca-o, não deixa de escapar àquilo que tem de acontecer. O homem é assim. Fá-lo, mesmo que saiba e sinta logo, desde o primeiro momento, que tudo o que faz é fatal. O homem e o seu destino seguram-se um ao outro, evocam-se e criam-se mutuamente. Não é verdade que o destino entre cego na nossa vida, não. O destino entra pela porta que nós mesmo abrimos, convidando-o a passar. Não há nenhum ser humano que seja bastante forte e inteligente para desviar com palavras ou com acções o destino fatal que advém, segundo leis irrevogáveis, da sua natureza, do seu carácter"

"As velas ardem até ao fim", Sándor Márai, Dom Quixote, 12.ª ed., 2006, p. 125.

quinta-feira, março 08, 2007

Dia da Mulher


Paul Gaugin, Femmes de Tahiti (sur la plage), 1891, Musée d'Orsay, Paris.

Celebrar o “Dia da Mulher” é cumprir gostosamente um dia do calendário. Cumpri-lo com a convicção, mediada pela razão e pela emoção, de que a Mulher é, na verdade, um ser mágico, quase sagrado. Mais do que relembrar as mães de todos nós – esteios de Vida e fontes de Vida –, festejar este dia é reconhecermo-nos, a nós homens, perante seres semelhantes e, por isso, complementares.
Dir-se-á que a melhor ode à Mulher seria não haver necessidade de se instituir o seu Dia. Porventura assim será. Contudo, não tendo medo do “cliché”, dias da mulher (e do homem) são-no todos.
Na Mulher densifica-se o género humano. As costelas de Adão deveriam ser, na verdade, das partes mais nobres do seu corpo, a acreditar no narrador bíblico. Nunca um conjunto de ossos foi capaz de dar origem (mítica e metaforicamente) a um ser relacionado com a sensibilidade, o amor e a beleza. Por certo são atributos que não se adequam a todas as mulheres (ou homens). É o problema dos estereótipos que, mau grado as suas intrínsecas debilidades, contêm a virtualidade de funcionar como traves-mestras do pensamento, quantas vezes enganosas, mas produtoras da segurança mínima que todos respiramos para viver.
Dia da Mulher, Dia do Homem. Humanidade que se celebra e ao celebrar-se recorda que, lá no fundo, haverá uma hipótese de ser estruturalmente boa.
Os beijos, as flores, os gestos, as palavras, os olhares de hoje terão um sentido adicional. Saibamos aproveitá-los!

Marc Moulin - "Silver (Who stole the groove)"

Marc Moulin, pianista belga de formação clássica, mistura muito bem as sonoridades jazzisticas com soul, funk, electrónica e música orgânica.
Sam Suffy, originariamente editado em 1975 e reeditado trinta anos depois pela Blue Note, é a obra maior.
Conheci-o, no entanto, através do álbum “Entertainment” (Blue Note, 2004). Gostei muito do seu fusion jazz. Desiludi-me, depois, com o concerto de apresentação desse trabalho na Casa da Música (nos primeiros tempos de vida dessa sala de espectáculos, já lá vão quase dois anos). Grande parte dos sons eram (ou, pelo menos, pareciam ser) pré-gravados. O músico mostrou-se antipático e sobranceiro. A sensação de desagrado foi aumentada pelo desconforto que as cadeiras da sala 2 me causaram (e, ainda, causam!). Só a prestação do VJ (e, naturalmente, a companhia! :-)) deu algum brilho à noite!
Se tivesse que escolher uma música de “Entertainment” seria “Le grand voyage”. Como não se encontra no you-tube, tive de optar por “Silver” (Who stole the groove?)

terça-feira, março 06, 2007

O devido agradecimento a uma leitora amiga

Já há algum tempo que queria aqui manifestar o meu profundo agradecimento à Thumbelina. Não pelos seus comentários, sempre certeiros e mordazes, que vai deixando aqui no blog assiduamente, uns sob o seu nome de guerra, outros em versão undercover. Não por nos ter dado a conhecer, em breaking news, a existência dessa realidade incontornável que é o supino latino. Nem sequer pelos seus preciosos Aufgabe que vai partilhando com a comunidade de Kursteilnehmers. Tudo isso já seria (mais do que) suficiente para um enorme agradecimento. Mas a nada diz me refiro no presente.
O seu acto que merece aqui a Medalha de Honra deste blog é de ter concebido, produzido e editado a primeira colectânea musical deste nosso espaço blogosférico. De seu nome "Tretas&Letras. The best of", anuncia-se o primeiro de muitos e capaz de ombrear com muitos best-sellers dos charts nacionais... e mesmo internacionais.
Muito obrigada, Thumbelina, por nos dar música! :-)

segunda-feira, março 05, 2007

Porto de Vista Esclarecida (VII)

Gbn acertou novamente! E, mais uma vez, com uma resposta muito completa.

Trata-se, de facto, de um pormenor da fachada dos Armazéns Cunhas. O pavão engaladado testemunha a permanente promessa de novidades a preços baratos!

É uma imagem de uma cidade diferente, com hábitos distintos. A marca de um passado recente, em que o comércio se fazia a retalho em estabelecimentos com tradição.

Ocupa um dos lados da Praça Gomes Teixeira, mais conhecida por Praça dos Leões, em homenagem aos belos exemplares do rei da selva que habitam a fonte que se encontra no seu centro.

Em frente situa-se o belo edificio que já albergou a Faculdade de Ciências e que hoje acolhe a Reitoria da Universidade do Porto. Nos seus corredores encontram-se interessantes fotografias do Porto Antigo de que falava, em que o tempo se movia ao compasso das carruagens e a vida era feita de tradições. Aqui fica, então, um retrato da Praça dos leões dessa época.

Por fim, e em honra à caríssima Thumbelina, deixo uma fotografia de um dos habitantes dos jardins do Palácio de Cristal. Este, sem dúvida, mais envergonhado...

Porto de vista VII


sábado, março 03, 2007

Early night posts (21)

A roda da vida

"Nenhuma defesa apresentada pelos advogados do Rei foi relevante para os extremistas da Convenção. Muitos deles argumentaram que o julgamento em si era completamente desnecessário. Ao contrário dos Girondinos, que consideravam importante manterem o Rei vivo como refém, Robespierre era de opinião que Luís Capeto já se tinha condenado à morte pelos seus actos. O jovem orador revolucionário Saint-Juste disse: «Luís já foi julgado, não pode ir outra vez a tribunal... Deve morrer não pelo que fez, mas pelo que foi.»"

Antonia Fraser - Maria Antonieta - A viagem, Ed. Oceanos, 2001, p. 158.

quinta-feira, março 01, 2007

ZOOMático


Tranquilidade